sou do portugal desdentado, sem aparelho ortodôntico nem cheque-dentista, que ri com todos os dentes que lhe restam das pequenas e suas patéticas tristezas.
sou do mar, do destemido pavor atlântico, do embalo mediterrânico e do ficar em àguas de bacalhau.
sou do sul, das áfricas e dos brasis, sou do funk e das vulvas sem crucifixos.
sou da europa, – mas não da velha aristocrata que estende ao beija-mão os dedos ossudos cravejados de jóias – sou velha gaiteira com anedota trocista na ponta da língua bífida.
sou do oriente, do olhar amendoado, do salamaleque.
sou das artes, dos olhos míopes sem óculos de apreciador, da merda embalada a folha d’ouro e da pérola encontrada no lixo.
sou da terra, da poeira, das mãos calejadas, das lágrimas mudas.
sou são jorge e o dragão, sem orgulho nas cobardias de ontem, a olhar para o dia de hoje como possibilidade de redenção.
sou da mesa, de chorar com prazeres íntimos, da beleza que dói.
sou dos filhos, de debaixo das fraldas, da risada solta e do nó-na-garganta.
sou dos pais, sou guarda-chuva, sou catapulta e corto sem temor a corda em tensão.
sou do espaço, sou corpo com luz própria, que visto ao longe se dilui na poeira das estrelas.